O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta quarta-feira (10) o julgamento que discute a validade do marco temporal para demarcação de terras indígenas — regra controversa que define que povos originários só teriam direito às áreas que ocupavam (ou disputavam judicialmente) em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
Nesta etapa do julgamento, não há previsão de votação imediata; o tribunal vai ouvir sustentações orais das partes envolvidas, e a data da deliberação será marcada posteriormente.
Embora a tese do marco temporal tivesse sido declarada inconstitucional pelo STF em 2023, por maioria, com entendimento de que a ocupação tradicional deve ser analisada caso a caso e não definida por uma data fixa, a controvérsia voltou após a aprovação da Lei 14.701/2023 pelo Congresso Nacional — que restabeleceu o marco como critério para demarcação.
Em consequência, diversos processos de demarcação foram retomados sob a nova legislação, enquanto entidades indigenistas — e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) — recorreram ao STF requerendo que a regra seja novamente barrada.

O que está em jogo no julgamento do Marco Temporal?
1 – Terras indígenas, memória histórica e deslocamentos forçados
A adoção do marco temporal ignora um ponto histórico essencial: muitos povos indígenas foram expulsos de seus territórios tradicionais antes de 1988, em ciclos de colonização, expansão agrícola ou políticas de remoção forçada — sobretudo nas regiões Norte e Nordeste, onde eventos de deslocamento foram frequentes.
Sob a tese do marco, essas comunidades perderiam a chance de reivindicar suas terras ancestrais, mesmo quando há forte evidência histórica, cultural e antropológica de ocupação antiga. Isso representa não apenas uma negação de direitos originários, mas também um grave corte na possibilidade de reconquista de espaços fundamentais para sua sobrevivência social, cultural e econômica.
2 – Impacto ambiental e social — além da demarcação
As terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas frequentemente correspondem a áreas de floresta, biodiversidade e recursos naturais essenciais à conservação. A limitação ou negação de demarcação com base em data fixa fragiliza a proteção dessas áreas, favorecendo pressões de agronegócio, mineração, grilagem e desmatamento.
Especialistas e organizações indigenistas destacam que tal retrocesso preocupa também quem vive fora dessas regiões: a degradação ambiental e a perda de territórios indígenas refletem no clima, biodiversidade e estabilidade ecológica nacional — um prejuízo que atinge todo o Brasil.
3 – Consequências práticas para comunidades nordestinas
No Nordeste, onde diversos povos indígenas resistem, vivem em áreas tradicionais e carregam historicamente batalhas por demarcação, a confirmação do marco temporal significa risco real de perda de territórios reivindicados.
Além disso, a instabilidade jurídica — com avanços, retrocessos, indefinições e liminares — inviabiliza processos de regularização fundiária, impede segurança territorial e fragiliza direitos já consolidados.
Para essas comunidades, não se trata apenas de terra, mas de preservação cultural, modo de vida, identidade — fatores que o marco temporal ignora em nome de um critério arbitrário e histórico-legal.
4 – A via da conciliação — pouco acolhida pelas lideranças indígenas
Nos últimos meses, o STF chegou a convocar uma comissão de conciliação — presidida pelo ministro relator — para buscar um meio-termo entre ruralistas, governo, Estado e sociedades indígenas. A proposta previa, entre outros aspectos, revisão de procedimentos de demarcação, regularização administrativa e ampliação da participação de estados e municípios.
No entanto, a principal entidade nacional de defesa dos povos indígenas considerou que não havia “paridade” no debate e abandonou o processo de conciliação — denunciando que as negociações favoreciam interesses contrários aos direitos originários.
Para muitos representantes indígenas, a conciliação significava abrir mão de direitos fundamentais em troca de promessas de compensação ou regularização limitada — uma troca incomparável ao reconhecimento pleno da ocupação tradicional.
5 – O retrato da insegurança jurídica e seus reflexos futuros
Desde a aprovação da Lei 14.701/2023, o ano de 2024 foi marcado por um aumento nos conflitos fundiários, violações de direitos territoriais e relatos de atos de violência contra comunidades indígenas em várias regiões do país — resultado direto da insegurança criada pela reintrodução do marco temporal. Cimi+1
A continuidade do debate no STF, agora em 2025, representa uma nova chance de decisão definitiva — mas também prolonga o clima de incerteza para milhares de indígenas.
Para o Nordeste, um veredito favorável aos povos originários significaria não apenas justiça histórica, mas garantia de futuro para territórios que resistem há décadas. Já a confirmação do marco temporal consolidaria um retrocesso institucional e legal, com amplos efeitos para demarcações e conservação socioambiental.
6 – A situação não apenas uma disputa jurídica — uma questão de direitos, memória e futuro
A retomada do julgamento do marco temporal no STF não é apenas mais um capítulo de uma disputa legal: trata-se de decisão que definirá o destino de centenas de comunidades indígenas, especialmente nas regiões mais vulneráveis historicamente, como o Nordeste.
A adoção de um critério fixo e datado para definir ocupação ignora realidades marcadas por expulsões, deslocamentos e violência — além de negligenciar a proteção socioambiental garantida aos povos originários pela Constituição.
Portanto, se o Brasil pretende honrar a pluralidade de seus povos e cumprir o que foi prometido na Carta Magna, deve reconhecer as terras tradicionais de cada povo a partir da história e da memória, não de um recorte arbitrário no tempo.
Afinal, a democracia, a justiça social e a preservação ambiental exigem que o juiz maior do país decida considerando não apenas a lei, mas a reparação histórica — e o reconhecimento dos direitos originários dos povos indígenas.
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