A imagem do Brasil fora do país ainda é de carnaval e futebol. Aqui dentro, há mais diversidade, mas o Carnaval é, sem medo de errar, a maior festa popular desse território continental há anos. Uma festa tradicional que contagia a população brasileira, vira feriado nacional e costuma ser mais forte e emblemática nas cidades do Rio de Janeiro, Recife e Salvador.
Na capital baiana, por exemplo, parafraseando Caetano, índios, padres, bichas, negros, mulheres e adolescentes fazem o carnaval, uma festa que mobiliza todas as camadas sociais, cria fama, lança modas e escorre para outros cantos do país. Mas há exatos dois anos, em função de uma peste virótica, a festa de Momo não tem acontecido nos moldes em que é habitual, ocupando ruas da cidade e aglomerando a multidão que sai atrás de música, alegria, cachaça e beijo.
Diante dessa lacuna, a banda BaianaSystem decidiu lançar o curta-metragem documental Manifestação – Carnaval do invisível para falar justamente dessa ausência e do que ela significa. A ideia é também questionar outras invisibilidades da festa, como a participação dos trabalhadores marginalizados – cordeiros, catadores de lixo e vendedores ambulantes –, das pessoas com deficiência, e o futuro dos próximos carnavais.
“A proposta do curta é, basicamente, aprender com o passado, fazer um presente diferente e ter mais esperança no futuro. Ele não fala somente de um tipo de invisibilidade. É um conteúdo que permeia todas as expressões culturais. É uma forma poética, documental, musical, reflexiva de trazer para os olhos do público aquilo que a gente muitas vezes não dá conta”, informa Russo Passapusso, vocalista da BaianaSystem.
Com produção associada da Janela do Mundo e realização da Máquina de Louco, o doc acabou de ser lançado e pode ser assistido no canal da Amazon Music, no YouTube. Esse manifesto visual e musical contado a partir do olhar do personagem ‘invisível’ foi realizado nas ruas do centro antigo de Salvador, justamente onde acontece o carnaval mais potente e popular da cidade.
Afro-brasilidade
Em 22 minutos de filme, Manifestação – Carnaval do invisível exibe uma série de imagens de arquivo de carnavais da década de 1940 até os dias atuais, além de registros das apresentações da BaianaSystem e seu trio Navio Pirata, feitos ao longo dos últimos 10 anos do carnaval baiano.
Focado em questões sociais, como racismo e discriminação socioeconômica, o minidocumentário discorre sobre a importância da festa para a cidade e do seu vínculo com a cultura afro-brasileira, a política e a musicalidade. Segundo Russo, o vídeo é um manifesto visual a partir dos sentidos, percepções e reflexões provocados pela ausência do carnaval em Salvador.
Através de depoimentos e imagens de arquivo, a narrativa é costurada com trilha sonora da BaianaSystem e do maestro Ubiratan Marques. Participam o ator Leno Sacramento, a antropóloga Goli Guerreiro, o músico e educador Mestre Jackson, o maestro Ubiratan Marques, o cineasta Matheus Rocha, e as meninas Emilly e Emanuelly do Rosário Silva Santos. A direção é coletiva: Filipe Cartaxo, Letícia Simões e Passapusso.
“Se observarmos que essa festa, mesmo no surgimento, era ligada aos deuses gregos, romanos, entre outros, aqui não é diferente, só que no Brasil os deuses são outros, são nossos orixás. Não é necessário muito esforço para perceber, basta analisar os ritmos da música do carnaval, samba, ijexá, maracatu, etc.. Todos ritmos que vêm dos nossos terreiros e estão intimamente associados aos cultos sagrados. Ou seja, o nosso carnaval é negro em todos os sentidos, nasce da alma da população negra”, esclarece o maestro Bira Marques.
Goli Guerreiro, proeminente pesquisadora independente da diáspora negra, vai além e diz que o carnaval, assim como o candomblé, são os espaços de recriação cultural do povo negro fora do continente africano.
“Todo o imaginário das várias etnias que foram sequestradas na África, e aportaram na Bahia, foi reconfigurado nesses espaços de resistência cultural. É inacreditável que todo esse legado intelectual, comportamental e artístico não se converta em termos econômicos para os legítimos produtores dessa cultura”, comenta, indignada, Goli.
Explosão e catarse
E quanto a esses dois anos sem trios elétricos e folia, Bira acredita que o povo sente muita falta e que isso deve mexer com a cabeça de cada um.
“Inclusive sempre tive essa percepção ao olhar o semblante do folião no último dia de carnaval. O carnaval é um lugar de encontros, de busca, de trabalho, de cultura, mas principalmente um lugar onde cada um se reencontra com seu lugar”, observa Bira.
Já Goli Guerreiro ainda não sabe o que essa ausência pode gerar na população, mas aposta em possíveis mudanças sociais e políticas em função do tempo de reflexão que a pandemia nos impõe.
“Pode trazer uma maior consciência política para a busca de uma proposta social e econômica que enfrente a desigualdade e o racismo – fatores que seguem colocando à margem dos lucros da festa os afoxés, blocos afros, percussionistas e as milhares de pessoas que trabalham como ambulantes e cordeiros”, discorre Guerreiro.
Para Russo, os carnavais seguem sendo sempre explosivos, ano após ano. “Quando a gente tiver permissão de ir para a rua, com certeza, vai ser um grande aflorar, uma grande catarse”.
Fomentador do curta, Passapusso gosta de frisar que o papel da BaianaSystem é ser verdadeira. “É mostrar que a gente tem um caminho de continuidade, é exaltar sempre os mestres da música baiana, como mestre Jackson, Ubiratan, Bule Bule, Lourimbau, Antonio Carlos e Jocafi, Margareth Menezes, Tonho Matéria, Olodum, Ilê Aiyê, Gilberto Gil, Caetano Veloso. Estar sempre exaltando todo o processo cultural que envolve as festas populares”, finaliza.
Fonte: Do A Tarde