A música brasileira é rica em diversidade e influências, mas nem sempre reconhece a importância das religiões de matriz africana na sua formação. Um grupo que se destacou por trazer os cantos e ritmos do candomblé para o cenário musical foi Os Tincoãs, formado na década de 1960, em Cachoeira, no Recôncavo Baiano.
O trio, composto por Mateus Aleluia, Dadinho e Badu, marcou um momento pioneiro na música nacional, ao incorporar as canções e ritmos religiosos afro-brasileiros em suas composições. Uma história que está sendo revivida neste ano, com o lançamento de Canto Coral Afrobrasileiro, álbum gravado em 1983, mas que ficou engavetado por quase 40 anos.
O disco, que conta com a participação do coral dos Correios, traz 12 faixas que celebram a cultura e a fé dos povos de terreiro. O trabalho é considerado um ato de resistência e de valorização das raízes africanas na identidade brasileira.
“É difícil até mensurar o tamanho da importância do relançamento do álbum”, enfatiza o professor da Universidade Federal da Bahia Iuri Passos, que também é alagbê (chefe dos tocadores de atabaque) do Terreiro do Gantois e um dos autores do livro Nós, Os Tincoãs.
“Esta é uma oportunidade para as novas gerações conhecerem a história dos Tincoãs, que influenciou toda a música brasileira. A forma das melodias, com os cantos, os ritmos, o violão, as vozes, que são tão marcantes no trabalho, que é o marco de uma transição, quando a música começa a sair dos terreiros e ir para os palcos e, dali, para o mundo”, diz Passos.
Para o especialista, demarcar o espaço e a influência das religiões de matriz africana na cultura brasileira é especialmente relevante em um momento em que se multiplicam casos de intolerância religiosa.
“Ele vem em um momento crucial com esse relançamento, que é um ato de resistência, a prova de que ainda estamos aqui, lutando todos os dias pela representatividade de ser negro, negra, do candomblé. Ter a certeza de que você vai sair com as suas roupas do candomblé e voltar em paz para casa”, afirma.
Os Tincoãs nasceram da união de três amigos que cantavam no coral da igreja católica em Cachoeira. Eles começaram como um grupo de samba e bossa nova, mas logo perceberam que sua vocação era outra: expressar sua religiosidade através da música.
“Essa, basicamente, foi a nossa formação: candomblé à noite, para a gente dormir. Sino da igreja católica e o órgão da igreja católica invadindo os lares, durante o dia. Então, dessa base aí, ninguém fugia”, lembra Mateus Aleluia, que completa 80 anos nesta segunda-feira (25).
O músico conta que na sua época o candomblé era marginalizado e perseguido. “Na minha época, ele [culto] era marginal. Então, não se batia candomblé à vontade como hoje. Não se cultuava o candomblé como se cultua hoje. Era tudo na marginalidade”, afirma.
Foi nesse contexto que Os Tincoãs decidiram levar os cantos sagrados para fora dos muros dos terreiros e mostrar ao público a beleza e a força da música afro-brasileira. Eles gravaram seu primeiro disco em 1968, com canções como Deixa A Gira Girar e O Afrekete.
O grupo ganhou projeção nacional e internacional, fazendo shows pelo Brasil e pelo exterior. No ano de 1975, o grupo lançou a faixa Banzo, que entrou na trilha sonora da novela Escrava Isaura, da Rede Globo. Em 1983, eles gravaram o álbum Canto Coral Afrobrasileiro com o coral dos Correios. Porém, logo depois disso, Mateus Aleluia e Dadinho decidiram ficar em Angola, após uma turnê pelo país africano, o que levou ao fim do trio.
O disco ficou esquecido por décadas, até que foi resgatado pelo selo Discobertas, que o lançou em CD e nas plataformas digitais neste ano. O trabalho traz clássicos como Obaluaê, Ogum e Oxum, além de uma faixa inédita, Olorum Babá Mi.
A música dos Tincoãs continua viva e atual, sendo cultuada por bandas contemporâneas, como a paulistana Bixiga 70. “Apesar do Bixiga 70 carregar a influência de diversos estilos não propriamente brasileiros, sempre existiu uma preocupação muito grande nossa em soar brasileiro e buscar influências de raiz da música brasileira. E o Tincoãs era para gente uma sonoridade muito rica, muito forte e muito brasileira”, diz o saxofonista Cuca Ferreira, integrante da banda.
O músico destaca que o grupo baiano foi uma das primeiras referências de música afro-brasileira que ele teve contato. “Eu lembro que a primeira vez que eu ouvi Os Tincoãs foi na casa de um amigo meu, que tinha um disco de vinil deles. E eu fiquei impressionado com aquela sonoridade, com aquelas vozes, com aquele violão. Era uma coisa muito diferente do que eu estava acostumado a ouvir”, conta.
Ferreira afirma que o Bixiga 70 se inspira nos Tincoãs não só pela musicalidade, mas também pela postura política e cultural. “Eles foram muito corajosos de trazer os cantos do candomblé para a música popular, em uma época em que isso era muito discriminado e reprimido. Eles foram muito importantes para valorizar a cultura afro-brasileira e mostrar a sua riqueza e diversidade”, diz.
Mateus Aleluia, que segue em carreira solo desde que voltou ao Brasil, em 2002, diz que se sente honrado em ver o legado dos Tincoãs sendo reconhecido e reverenciado pelas novas gerações. “Eu fico feliz em ver que a nossa música continua tocando as pessoas, porque ela é feita com amor e fé. A gente faz um trabalho, e pode ser que agora esse trabalho não seja entendido. Mas nós vivemos pela fé e achamos que ele está sendo entendido, sim”, diz.
O cantor e compositor convida o público a conhecer o álbum Canto Coral Afrobrasileiro e a se emocionar com as canções dos Tincoãs. “Eu espero que as pessoas ouçam esse disco com o coração aberto e sintam a energia positiva que ele transmite. É um disco que fala da nossa ancestralidade, da nossa espiritualidade, da nossa identidade. É um disco que fala de nós”, conclui.
https://www.youtube.com/watch?v=NEsv5GWOsiI
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